sábado, 23 de outubro de 2010

Passado Presente

Ela possuia um olhar baixo, angústia, talvez; mesmo desconhecidos desde já entendiam, porque tanta magreza, tanta branco, tanta falta de cor, quase sem recheio. Que garota opaca. Antes a mãe dela que torrasse a mão em suas bochechas, assim pelo menos ficariam coradas. Dentro dela existia uma ausência imersa; alguma coisa irremediável; ás vezes irritava, ás vezes se acostumava, ás vezes ardia, imerecido, imigrado.
Certa vez voltando do trabalho, de pé, pensava; cores, certas cores. Azul, preto, cinza, rosa, verde, amarelo, branco, vermelho. Imaginava, cavalos brancos, Unicórnios, Bretões, Crioulos, Pasos, Árabes. Céu azul, ou céu avermelhado, nublado, amarelado, sol se pondo, pôr-do-sol, ali se estava. Imaginava árvores grandes, ávores de tronco largo, fortes e grossos, raízes em destaque, folhas caídas dando ao ver o outono, folhas verdes, riscadas, formando símbolos. Natal. Não deixava virar um manicomio geral. Imaginação pode tudo; mas isso ela não queria. Não queria que o real necessário se transformasse também em imaginação. Perdia o sentido frequentemente. Lembrou por leve de um relacionamento unilateral, lembrou tão de leve que se assustou com a buzina de um carro, fusca. Velho. Se assustou e retomou sua reta. A perda de alguém tão próximo e ao mesmo tão distante feria. Sua pele descuidada, as unhas desfeitas, mas limpas, higiênicas. A roupa comportada; se movia com pernas tão suaves que quem abaixasse os olhos e percebesse a voracidade dos pés, de quem tinha o dever de dar mil marchadadas numa formiga só, a julgaria como alguém altamente excêntrica ou uma louca como comum se pelos lados.

Mas não, não era assim,
E pra nós, pra mim, pra ela,
não havia de ser assim.

Voltou a si. Perdia o sentido frequentemente. Pensou em como lembranças tinham o potencial de fazê-la sentir camuflada. Não intencionado. Acontecia. Passou numa rua deserta mas suas habitações que nela estavam se percebia de certa distância e se ouvia barulho. Passara por um salão, apartamentos, lojas de luxo, uma floricultura e uma perfumaria. Num beco, no final da rua, se via tráfego. Tanta gente amontoada e suja e suada que retornou e seguiu outra via. Bandas desconhecidas, se perdeu. Agora sim, precisava se camuflar. Passou pela floricultura e imaginou-se dentro de um travesseiro de flores, rosas, margaridas, girassóis, gramídeas, margaridas. Sem flores comestíveis. Sem abelhas procurando pólen, não há nada nelas nem muito menos em mim. Espanto-lhes. - Chega. Vou sair daqui.
Chegou em casa. Primeira coisa vista, sua mãe, deitada de bruços no sofá. De lado, uma garrafa de vinho. Doce. Vazia. Com a pouca força que o dia a tomara, levou sua mãe ao dormitório e do seu lado sentou. Rodou novicentas e noventa e nove milhões de vezes, porque tudo haveria de ter que ser assim. Sua fé não era lá tão grande, mal podia se permitir em crer em algum Deus, pra ela tudo se fazia de sorte, e as pessoas só o usavam como anestésico. Entretando ela se pegava sonhando e acreditando, sim, tinha esperança. A maré poderia ter a folga de existir a possibilidade de alguma coisa, ao menos, que a desse afago em abundância.
Sua irmã deu um toque na porta e disse que 'já cheguei' com tom de desdém, não viu sua mãe, estava tudo escuro, depois disse 'que escuridão, pra quê isso?' - Nada. Não é nada, saia daqui. - Em seguida sua irmã saiu e a deixou, ela olhava para a mãe com quem pedia perdão por sentir pena, asco, dó. Mas a amava. E como amava. Queria seu auxilio. Queria seu porto. Queria que ela se assumisse como uma fonte. Mas não, não assumia... De quê adiantava? - Opa, tenho que fazer a janta.
Se trocou mais pálida ainda e colocou o avental; seu pai chegou, inquieto, porém em silêncio. Se serviu da janta já requentada e começaram discurssões, não com ela - ela não fazia a mínima diferença e por isso ninguém a olhara, ninguém surpreendia-se com atitudes dela ou que fosse a desfeita, não se permitia dar desgosto. Só cumpria obrigações. Bastava.
A luz acabou. Olhou pro pai e pensou em como alguém poderia falar tantos palavrões e devaneios no mesmo segundo, que preparação. Continou olhando sem ser olhada e pensou - se preocupe quando eu coçar a cabeça e ficar sem piscar por três ou dois ou quatro segundos, aí sim, se preocupe -. A mãe ainda dormia; ouviram a porta bater e o portão ranger. Não haviam velas. "DIACHO!" Falava o pai.
Exatas três horas depois a luz voltou. Sua irmã voltara. Seu pai já havia dormido pois estava cansado da oficina e amanhã ás-se-te-ho-ras tinha igreja. Compromisso. Estava mais cansado ainda porque, sua filha, a outra, dara trabalho no dia. Nova, tão nova, e já dando trabalho, pensava. Se descobrisse que o cansaço foi em vão e que houve enganos jogados, haveria influências a serem contadas, influências falsas, certeza. O olhar de angústia da outra irmã pensava isso. E sabia que iria cair pra ela. Sabia. Mas sabia que as aparências enganavam, e que no caso dela, nem miséria aparência ela tinha. Que desgaste. Sua irmã chegou ás vinte e quatro horas e a viu sentada no sofá, começou o discurso. Afobada. Falava baixo. Você enganou seu pai direitinho, garota. Sair quando se apaga a luz é ótimo, a arruaça lá fora é o que todo mundo faz, não é?! Mas você não, foi mais espera e mais ágil, foi logo se esfregando no primeiro rosto-velho que você viu. Sim, rosto velho. Você não o conhece. Além de velho, é estranho. Como pode se esconder nos fundos da casa de um estranho? Viver é correr riscos; mas não esses. Você não pensou, foi logo com a cabeça fraca. Que bom. Você pensa. Que bom que aproveitei. Mas te pergunto como fica o depois, e você se diz imprestável com um sorriso de orelha á orelha, minha cara, isso não é vida. Depois, e o seu depois?! Não vou lhe dizer que ele não vai vir e você vai se arrepender de tudo, não. Ele virá. Mas, parece que pra você, enganar e mentir e se ferrar é só uma parte do pacote. Você chegou ao mundo chorando. TEVE que chorar. TEVE que chorar pra provar que estava viva e era normal. Chora agora. Chora! Você merece. Mas chorar não vai te fazer bem; você só vai perder um líquido do seu corpo e se, for diabética que nem sua mãe, sua compaixão vai se escorrer. Pra lá. Rio, mar, oceno a baixo. Não dizem que produzir baixa glicose, abaixar seu ritmo, baixa também sua cabeça. Não me dirijo á compaixão ao próximo, compaixão com si mesma. Perdão. Você vai ter que fazer isso. Terá. Não sou nenhuma evangélica mistificada e transtornada e totalmente cega, sou você e caminho com você. Desprezo. Desprezo economiza ódio, despreze. Então... Mas, não me deixe para trás - eu não queria você, pensava. eu queria ele.início dele. Metade dele. Todo ele -. Mas eu sei que você vai deixar. Você precisa me deixar. Mas se leve. Não se deixa pra trás e nem se quebre, porque coisas tão sensíveis demoram á ser repostas.

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